Covas de Ferro

O Palácio da Pena e o Castelo dos Mouros erguem-se magníficos na paisagem deslumbrante da Serra de Sintra. Em frente, no extremo norte do Concelho, o verde-escuro da vertente soalheira da Serra de Monfirre, salpica-se, acima dos trezentos metros de altitude, de telhados vermelhos e casinhas caiadas de branco: Eis Covas de Ferro.
Desconhecem-se as raízes e a fundação mas, diz a sabedoria popular, que o seu nome está, muito provavelmente, associado à extracção de minério de ferro. No planalto da Serra da Carva existem, ainda hoje, vestígios dessa actividade de tempos idos.
Aqui, um único marco geográfico divide, administrativamente, o concelho de Sintra dos de Loures e Mafra.
Terreno pobre, pouco fértil, ao contrário de outras aldeias vizinhas, eminentemente agrícolas. Chão de serra, do solo só brota urze e carqueja. Por isso, não admira que daqui tivessem saído braços fortes que, de sol a sol, cavaram, araram, revolveram e ceifaram os campos dos lavradores dos Casais das redondezas. Saíram daqui, anos a fio, carroças, galeras e camionetas, carregadas de lenha, o combustível que durante décadas alimentou as lareiras da capital. Trouxas de roupa lavada, cuidada e perfumada na urze e na murta da serra, saíram daqui diariamente, rumo às freguesas de Lisboa. Actividade preponderante para a economia doméstica das nossas avós, estendeu-se um pouco por toda a região saloia, tendo até sido tema de um clássico do cinema português dos anos 30 do século passado.
De tez morena, queimada pela fria madrugada que cora a roupa com alvura, ou pelo sol vivo que a seca, faces rosadas saudáveis, braços musculados de bater a roupa na pedra, eram, estas lavadeiras o cartão de visita dos bons ares da nossa terra.
No último quartel do século XIX e até anos trinta e quarenta do século XX, Covas de Ferro foi, também, sanatório natural de muitos citadinos atacados de tuberculose. A pureza do ar da serra de Monfirre, ainda hoje de qualidade muito razoável, trouxe, não só de Lisboa mas também de muitos outros lugares, doentes condenados em busca da cura que almejavam. E houve casos de sucesso, curas milagrosas só com estes ares e então a notícia correu célere. Por uns míseros tostões, os habitantes alheios a um possível contágio, hospedavam doentes em sua casa, alugando-lhes os seus quartos de dormir, servindo-lhes os alimentos e todos os cuidados de que necessitavam. Aos fins-de-semana, a população duplicava, triplicava. Era um corrupio. Os familiares dos doentes vinham visitá-los, e os transportes bem piores que os de hoje, eram feitos por pachorrentos burricos, desde o apeadeiro da Pedra Furada, em cortejo semanal, até Covas de Ferro, orgulhosa dos seus afamados ares.
A doença, felizmente, é erradicada. Doentes e visitantes vão desaparecendo, dando lugar aos veraneantes a quem tinha também chegado a fama dos bons ares da Serra de Monfirre, e que regressavam todos os fins-de-semana. Alguns até adquiriram casa própria e foram ficando. Entre doentes e veraneantes que vinham a ares é justo destacar duas personalidades:
O Jaime da Flora, chegou tuberculoso, foi ficando, melhorou. A mãe, Flora era conhecida. Boa gente, havia sido patroa de algumas lavadeiras. O Jaime, chegou doente, a mãe recomendou-o e logo se procurou dar-lhe o melhor. Merecidamente. Flora tinha sido uma boa freguesa. Para matar o tempo, e fazer face a algumas despesas, Jaime abriu uma escola onde durante alguns anos ensinou crianças e adultos a ler e escrever. Personagem enigmática, viveu aqui durante alguns anos com mulher e um filho. Um dia, envelhecido, partiu como chegou: doente e pobre deixando atrás de si um rasto de gratidão pelo ensino ministrado, hoje apenas recordado por alguns anciãos.
Fidelino de Figueiredo, é um outro nome indelevelmente gravado na história da aldeia. Professor universitário, historiador, conferencista, ensaísta, destacado antifascista, no intervalo dos seus exílios políticos, repartia a sua residência de Alvalade com a de Covas de Ferro. Aqui, refugiava-se por largos períodos para escrever. Aqui, tinha a tranquilidade e a liberdade por que lutava, inspirava-se na paisagem campestre de roupa branca a corar, no aroma a murta e pinho da serra.
Sempre neste cenário de serra e lavadeira - o pinheiro, a lavadeira e o mineiro, são o centro da bandeira da Liga dos Amigos de Covas de Ferro, colectividade de desporto, cultura e recreio, fundada em 31 de Janeiro de 1971 pela vontade dos seus naturais darem a conhecer a terra que os viu nascer; contribuir para o progresso e engrandecimento da localidade, concorrer para a elevação moral e cultural dos seus habitantes, princípios que estão consignados nos seus estatutos. Nos anos 50 e 60 do século XX e até à Revolução dos cravos, as Juntas de Freguesia, no início de cada ano, apresentavam cumprimentos de Ano Novo ao Sr. Presidente da Câmara, deslocando-se à sede do Concelho acompanhadas das forças vivas das Freguesias. Os representantes das localidades eram os Clubes e Sociedades Recreativas. Empunhavam estandartes ou bandeiras e eram identificados como sendo desta ou daquela localidade. Nós íamos de mãos vazias, sem nada que nos identificasse, completamente anónimos, de tal modo que durante muitos anos fomos completamente ignorados. No início da década de sessenta, a aldeia não tinha ruas alcatroadas, não tinha electricidade, não tinha escola. Distribuição de água ao domicílio e esgotos demoraram quarenta anos.
Foi numa dessas idas a Sintra que explodiu a ideia que há muito fervilhava: -Criar um Clube em Covas de Ferro. Trabalhou-se afincadamente. Elaboraram-se estatutos, fez-se escritura pública, alugou-se um barracão que durante nove anos serviu de Sede, e um ano depois a Liga dos Amigos de Covas de Ferro assumia o papel de representante dos seus sócios e habitantes. Em torno da sua bandeira o povo uniu-se. Empolgam-se os mais velhos quando recordam esses tempos difíceis, mas de realização de alguns dos mais prementes anseios da população. Pesquisou-se água. Construíram-se fontes e chafarizes. Construíram-se lavadouros públicos, abriram-se e repararam-se ruas.
Trabalhou-se noite e dia em prol de objectivos comuns. Inventaram-se todos os meios, honestos, de se conseguir realizar dinheiro para aplicar em melhoramentos na aldeia, até à edificação da jóia querida do povo da terra: a Escola Primária, construída unicamente com donativos dos habitantes da terra e amigos de aldeias vizinhas. Obra de realização popular, inaugurada em 1972, corre agora o risco de fechar por falta de alunos. A desastrosa política urbanística das sucessivas Câmaras Municipais, afastou da aldeia as gerações mais novas que residem agora em Mafra, na Malveira, Venda do Pinheiro ou Tapada das Mercês, impossibilitadas que foram de construir num terreno dos pais ou dos avós.
Assiste-se desde há alguns anos a um contínuo decréscimo e envelhecimento da população. A vontade politica, e as medidas que, até agora, não foram tomadas, permitem concluir que não se vislumbra, tendência em inverter ou pelo menos estancar este êxodo dos nossos jovens. Ninguém aqui quer prédios. Queremos, tão só, manter a nossa comunidade, ter os nossos filhos perto de nós. São bem simples e lineares as decisões que se devem tomar.
Com uma população envelhecida, sentiu-se a necessidade, no final dos anos oitenta, de uma protecção à terceira idade, cada vez mais só e desamparada dos filhos que partiram para longe. Nasce, assim, a Associação de Reformados Pensionistas e Idosos "Os Ferrinhos", fundada em 12 de Dezembro de 1990 e que desde então vem desenvolvendo uma meritória actividade de apoio aos mais idosos, fruto das várias valências disponibilizadas.
Têm outro conforto os dias de hoje em Covas de Ferro. Convivem os mais idosos no Centro de Dia. Dispõem os mais novos de Escola Primária confortável, com parque infantil anexo, seguro e bem equipado. O edifício da Liga dos Amigos é polivalente e permite várias práticas lúdicas, desportivas culturais e recreativas e para todas as idades. Alberga numa das suas dependências a sede do Moto clube Montes Saloios, a mais recente associação da aldeia e que já vai sendo uma referência para os amantes do todo-o-terreno motorizado a duas ou quatro rodas. Existe um conforto que se escreve num parágrafo e que demorou tantos anos e custou tantos sacrifícios e privações.
Muitos dos residentes sentem ainda o conforto de ter emprego na aldeia. Umas quantas pequenas explorações hortícolas, que a pesquisa de água e as modernas tecnologias de estufa permitem tornar rentável, são empresas familiares que permitem criar aqui e ali uns postos de trabalho. A indústria existente, alguma também de cariz familiar, vai desde a de complemento à actividade hortícola - embalagem de produtos e as captações e pesquisas de águas, até à da construção civil e as que de si dependem: transformação de mármores e granitos, mobiliário, serralharias de ferro e alumínios. O comércio e serviços são suficientes.
A comunidade é aberta, e é fácil a quem chega de fora inserir-se nela. É bom viver aqui. É bom o ambiente.
São bons os nossos ares, é bom o cheiro a murta e pinho da serra.

Texto retirado de www.covas de ferro.com, redigido por Dinis Jorge - 2005

 

Em 1712, o padre António Carvalho da Costa diz-nos na sua Corografia Portuguesa ser “S. Pedro do Almagem do Bispo, Curado, que rende duzentos mil reis, e o apresentão os fregueses, tem estes lugares, Negrais, Feyteyra, Oullela, Carniceyro, Alfovara, Sabugo, Granja, Ribeyra, e as Mancebas, e tem mais no termo de Lisboa os lugares de D. Maria, Almorros [Almornos], Aruil de bayxo, e Aruil de cima, Camaraens, Alvogas, Covas de ferro, e divide o termo de Lisboa do de Cintra a rybeira de Val de Lobos, que nasce no lugar das Mancebas e se mete na rybeyra de Meleças.” (COSTA 1706-1712, Tomo III, p. 84).

Em 1716 o juiz de fora de Sintra, Dameão Correia Leytam, elabora por ordem de D. João V a lista “dos lugares, e villas de que consta este termo de Cintra, pertencentes ao Arcebispado de lisboa”: aí nos indica os lugares de Almargem, Santa Eulalia, Negraiz, Val de Figueira, Mas-trontaz, Alfouvora, Sabugo, Ribeira de Val de lobos, Tapada, Mancebaz, Portella, Almornhos, Donna Maria, Camaroenz, Arnil, Rodaz, Covaz de ferro, Alvogaz e Arrepolhar, os casais de Os priorez, Passo do musgo, Pedra dabelha, Aguieyra, A feiteyra, A dos gosmoz, Costa piquena, Granja, Fonte daranha, Quinta dos gafanhotos, A do bertão, Quinta de Nossa Senhora dos enfermos, Cazaiz, Ezopo, Abrocal e Assamudas; e as quintãns de Xarca e Fonte ruiva” (MARQUES s/d, Vol. VII, p. 3).

Texto retirado do livro "Almargem do Bispo - Histórias e Tradições" - Heitor Pato - 2012